segunda-feira, 2 de maio de 2011

Experiências difíceis...

Decidi relatar este acontecimento por insistência de uma coordenadora minha, ela achou viável tornar este fato público e na época 2007 não concordei, por “n” motivos que hoje finalmente não são mais relevantes, mas enfim vamos lá…
Efetivei no ensino público do estado de São Paulo em 2006, como professora de Biologia do Ensino Médio, na bagagem muitas intenções, ideais e tal. Na escolha levei um susto, consegui minha vaga em uma escola que… digamos assim: era difícil, na periferia da cidade e meio barra pesada sabe; morri de medo, minha cabeça andava a mil e de repente me vi lá dando aulas à tarde e a noite.
O primeiro dia letivo já foi tenso, os alunos costumam voltar das férias cheios de energia, e aquela ansiedade para rever os colegas e conversar atrapalha qualquer intenção de aula.
De cara ninguém me deixou falar, lembro-me bem da sensação que tive pensei: Nossa estudei tanto, me sacrifiquei tanto, … para isso! Apavorada seria a expressão mais adequada, em questão de segundos pensei no que deveria fazer para tentar controlar aquela situação e num impulso peguei o giz e dei início a uma aula de citologia, preenchi a lousa desperadamente com produção de texto, esquemas e tudo mais, sem olhar para trás. Aos poucos os alunos foram sentando abrindo os cadernos e silenciando a sala não totalmente. Bingo! Quando percebi que estavam ocupados, dei meu recado, me apresentei, falei das regras (doce ilusão)! E logo vi que no começo não poderia haver brechas de tempo.
Após as aulas noturnas eu dirigia de volta para casa por uns 18 km aproximadamente, em uma estrada sem iluminação e vários trechos desertos, voltei para casa angustiada, com muito medo, tive medo daquele lugar, das pessoas, do caminho de volta de tudo. Ao chegar minha família questionou sobre como havia sido e respondi em entrelinhas, mas meu semblante me traía.
Foram dias eternos, na ida para o trabalho eu escutava Oração de São Jorge dos Racionais MC TODOS OS DIAS, e aquela música me dava forças para enfrentar minhas dificuldades, me reinventava como professora e como gente, mas pouco resolvia
Para encurtar a história, dava aula em uma turma complicada, à noite, onde haviam alunos traficantes,os demais alunos com medo desta realidade e um aluno problemático.Pela primeira vez na minha vida eu estava frente à delinqüência, neste ínterim, este aluno destemido me provocava de todas as formas, andava a sala inteira, provocava os colegas, ria alto, conversava com pessoas do lado de fora por um vidro quebrado até que estouraram o quadro de energia elétrica e tudo escureceu. Foi um pesadelo, sem saber o que fazer me encolhi no canto da parede ouvindo todos saindo aos gritos e empurrando cadeiras e carteiras…
Aquela noite acabou assim, no meio de uma segunda aula do noturno, fui embora aterrorizada, minha vontade era não voltar ali nunca mais, desistir de tudo, foi mais uma noite de insônia, mais uma manhã de incertezas, respirei profundamente e fui trabalhar outra vez.
A semana transcorreu tensa, e na semana seguinte outra vez com esta turma,  este aluno me desafiava, até que resolvi enfrentá-lo, falei alto com ele e pedi que colaborasse e que daquele jeito não daria para continuar com ele na sala, foi fatal, ele levantou-se e se dirigiu até mim com violência, apontou o dedo em meu rosto e disse gritando:
-Vai fazer o quê mano? Tá pensando que vai causar aqui? Se liga, dá tua aulinha de boa.
Congelei, a sombra dele sobre mim era gigantesca, pensei: acabou, fim de linha. Silenciei por segundos e balbuciei:
-Sente-se, por favor, eu preciso trabalhar. Seus colegas precisam aprender.
Meu discurso foi breve, trêmulo, em tom baixo e muito humilde, e tudo o que eu queria naquele momento é que batesse o sinal, mas isso não aconteceu, estávamos no início da aula, uma tristeza infinita tomou conta de mim, ele usou termos impróprios e sentou-se como se nada tivesse acontecido, aqueles minutos se arrastaram até o fim da aula, e abalada demais dei as aulas restantes.
Voltei para casa com a certeza de que nunca mais voltaria àquele lugar. Lamentei amargamente ter estudado tanto, ter gasto o dinheiro dos meus pais e do meu marido nos estudos, ter feito esta escolha… pura decepção, com a vida, com tudo.
Olha, por mais que eu tente me expressar aqui, não encontro palavras que dimensione o que senti. Depois me envergonhei, onde já se viu? Lutei tanto, as pessoas depositaram tantos créditos nos meus objetivos, para que no primeiro revés eu desistisse.
E nesta mistura louca de sentimentos fui enfrentando os meus dias, às vezes pesados, às vezes mais leves, porém sempre cansativos e surpreendentes, eu sei dizer a vocês que um dia, cheguei nesta sala disposta a fazer algo pelos alunos que estavam acuados, chamei em particular meu aluno traficante e meu aluno delinqüente, e conversei com eles honestamente, expliquei que precisava exercer meu trabalho, e que eles precisavam de notas, mas que a gente poderia se entender, se eles colaborassem com o andamento das aulas, pelo menos não fizessem bagunça, não falassem alto, não amedrontassem os colegas, eu poderia considerar notas de boa conduta para eles (já que aprender não era do interesse deles), e que estas notas poderiam ajudá-los a compor uma nota satisfatória bimestral.
Voltei para casa naquele dia me sentindo um lixo, me analisei. Como assim fazer tratos com traficantes? Vasculhei impiedosamente minha moral, minha índole, meus princípios, como se eu pudesse negociar! Fui meu maior carrasco.
Milagrosamente na semana seguinte dei uma aula impecável naquela sala, tão impecável quanto o comportamento dos tais alunos, lidava com eles respeitosamente e exagerava nos clichês, e acreditem… eles faziam as tarefas, e eu claro, enaltecia qualquer boa atitude deles ou respostas, não se tornaram uns santos, mas atingiram metas satisfatórias.
Bem, este aluno problemático, me salvou de um assalto na hora da saída, entrava em outras salas quando eu dava aula, pedia licença e se, por favor, eu podia deixá-lo ali, que ele não iria atrapalhar minha aula. Eu trabalhei nesta escola durante um ano, pedi remoção, e quando o ano letivo acabou, fiquei saudosa, aqueles eram os meus alunos, e eles me ensinaram realmente ser uma professora melhor.
Desta experiência tive um grande aprendizado, adquiri mais paciência, cautela e passei a observar mais as pessoas para depois analisar como lidar com elas. Descobri que cada aluno carrega consigo marcas da sua história de vida, e às vezes, esta história de vida não é tão boa o quanto eu gostaria, estas marcas refletem-se na conduta em sala de aula e cabe a nós professores “preparados” (nem sempre) a compreensão dos fatos que irão nortear qual a metodologia a ser usada.
Outra verdade que este acontecimento evidenciou é que todos nós gostamos de ser tratados com respeito e dignidade, assim, ao receber atenção, dedicação e a importância devida, estes alunos acostumados com hostilidade ficaram surpresos, e num feedback passaram a se comportar conforme eram tratados.

Um comentário:

  1. Sabemos as dificuldades que um bom professor tem para dar aulas nos dias de hoje, sempre digo que os pais deveriam trabalhar juntos nessa missão, ser mais participativos, mas muitos nem conhecem a escola que o filho estuda, nem vai a reuniões, quanto mais os professores, então assistimos as notícias e lemos os jornais onde alunos agredem professores e até matam... Que bom que não desistiu, apesar de todas suas agonias e dúvidas fez a melhor escolha. Meu filho te acha The Best como tia e professora, e eu assino embaixo. Todos temos um momento de fraqueza, o importante é não deixar a bola furar e o jogo acabar. Tenho certeza que valeu muito seus anos de estudos e hoje você de alguma forma esta tendo esse retorno. Parabéns pelo texto, assim muitos podem refletir, pais, alunos e professores. bjs no coração.

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